As palavras se confundem e constantemente chamávamos Guriri de Mucuri. O lugar que estávamos confundido com o lugar que estivemos. Presente e passado bagunçados em nossas mentes pela similaridade das palavras e das ocasiões.
Como se houvesse passado e presente. Como se nossa viagem fosse demarcada por pontos e tempos definidos. Mas são só artimanhas do cérebro pra entender as coisas, então aceitamos e deixamos de pensar a respeito: “a Passarela Ecológica de Gigica sobre o mangue de Guriri”. Não, não era lá. Gigica era em Mucuri, na Bahia. E talvez o Seu Gigica nunca tenha conhecido Guriri.
Na passarela haviam quadros que contavam sua história e, lá vem spoiler, ele morre no final. Nos últimos quadros, ele naufraga e morre. Todo mundo morre no final, ou no começo, no passado ou no presente, Guriri, Mucuri, Bahia, Espirito Santo. Tanto faz.
O real é que estávamos em Guriri, já no Espírito Santo e lá estávamos seguindo uma intuição que não era minha, fazendo um trabalho que parecia não fazer sentido nenhum, por que de fato não fazia. Era só artimanhas do cérebro pra fazer com que a gente aceitasse estar ali. Ali, lá, Bahia, Espirito Santo ou onde quer que fosse, estávamos nos movendo por causas maiores do que trabalhos de fotografia e redes sociais. Aquele trabalho cheio de futilidade humana era só um pretexto, e naquele momento de despedida, o abraço transpondo o medo da pandemia, os olhos cheios de gratidão, marejados, mirando nossos sorrisos, nos deixava confiantes de uma missão cumprida, além da foto recusada.
Quando parei na frente daquela pousada aleatória, eu disse brincando mas com certeza “é aqui que iremos ficar”. Ao entrar, a rispidez e antipatia da anfitriã não nos assustou. Em outra ocasião, deixaríamos o local pra procurar outro lugar com mais hospitalidade e conforto. Não dessa vez. Sorrimos sobre sua cara fechada e aceitamos o preço por uma diária. Eu olhava pra Aline e questionava “por que ficamos?”.
Algum cliente deveria haver ali. Alguma coisa que fizesse sentido. Não havia nem uma mesa pra apoiar o computador, mas ficamos mesmo assim, me sentei na cama de qualquer jeito desconfortável com o computador no colo, e mandei mil mensagens para mil pousadas e estabelecimentos comerciais. Sequer respondiam minhas ofertas. Me irritava e continuava a questionar “por que estamos?”. Até que fomos conversar com a anfitriã pra tentar ganhar mais uns dias. E então, com sua cara fechada ela deixou escapar que havia perdido o pai um mês antes. Estava desmotivada, sem razão pra continuar gerenciando aquela pousada que nem era dela. Era de uma pessoa que morava longe, que não lhe dava respaldo nem reconhecia seu trabalho. Ela havia cansado e ia embora no final do mês. Então não tinha por que investir mais tempo ou energia naquilo.
E se pois a falar, e falou, sobre trabalhos, vidas e morte de seu pai. Desabafou tanto e algo me chegou a mente e me fez falar também. Falei sobre a morte de seu pai, sobre a morte no geral, sobre como aceitei a passagem de minha irmã e como ele estaria presente novamente assim como ela esteve. Eu nem sabia direito o que eu estava dizendo, mas seus olhos brilharam e sua rispidez trincou e deixou vazar uma pequena luz num tímido sorriso.
Passamos a semana assim. Mandando mais mil mensagens para mais mil estabelecimentos que nos ignorariam por completo. A anfitriã aparecia pra questionar sobre os trabalhos, mas na verdade queria contar mais sobre o pai e talvez ouvir algo mais, com um sorriso cada vez maior no rosto. A vida de seu pai se sobrepunha aos poucos sua morte recente e ia tomando conta das boas lembranças. A lembranças ruins também chegavam e as conversas tratavam de coloca-las em potinhos separados, para serem usados da maneira certa, como temperos picantes sobre pratos sem sabor.
Bem longe dali, meus pais também viviam dias tensos e eu me agoniava com incêndios do sudeste seco rodeando o sitio de meu pai. “A brigada de incêndio já foi enviada, já cuidou de tudo, fique tranquilo” dizia o cara que sempre me deixa a par de tudo. Mas o incêndio era além do fogo nos campos secos. O incêndio estava em minha mente, provocado pela chama que vinha com acusações eminentes, ainda que silenciosas acusações que eu sabia estar na mente de pessoas que não conseguem ver além da tais artimanhas do cérebro.
Que confuso que ficou tudo isso. Talvez ao reler no futuro, nem eu mesmo entenderei. Mas o que é o futuro? Qual a importância do futuro sobre o presente em que escrevo isso? A mensagem está ai. Eu deveria tratar de molhar esses campos antes que o fogo se alastre. E foi isso que eu fiz, com a ajuda da pessoa maravilhosa que caminha junto comigo. A mesma pessoa que mirou no lugar certo e fechou mais uma semana de voluntariado em uma praia mais ao sul. A última praia.
O dia de ir embora chegou. Colocamos nosso destino no GPS, mas tínhamos dois dias pra chegar, então saímos sem rumo novamente, pra passear, com tempo e bom humor, e aquele monte de coisas não deram certo, nos fizeram parar no melhor lugar que tinha pra gente parar. Como sempre! Passamos um bom final de semana, em um chalezinho confortável e tranquilo, pra descansar, recuperar as energias, refletir sobre tudo e voltar a acreditar.
Eu estava no banho quando ouvi Aline contando essa história para seu pai, mencionando o quanto nossa anfitriã ríspida e antipática estava feliz, cheia de carisma e gratidão quando saímos. Percebi a transformação, o trabalho que havia sido feito, fiquei feliz e chorei orgulhoso de nós. Todo incêndio será apagado.
Parece prepotência, mas é só vida em sua maior expressão.
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