Então, pela milésima vez eles levantaram suas placas acusando o pequeno ser de frio e insensível. A multidão enfurecida caminhava gritando em sua direção, o encurralando naquela rua sem saida. Temeroso, ele fechou os olhos, tapou os ouvidos e se calou.
Dentro do som do vácuo de seus ouvidos tapados, nas luzes e vultos imaginários enxergados pelos seus olhos fechados, ele começou a pensar nas acusações que caiam sobre si: Insensível.
Quão paradoxal pode ser essa acusação no atual contexto? Ser pequeno e insensível pois contestou um fato atestado pela massa. Sim, ele não sente o que todos sentem, portanto é insensível.
Em outra ocasião, ele, pequeno ser, preferiu não demonstrar reação a determinada ação alheia, para não agredir, contrariar ou provocar qualquer sentimento contraditório como o que estava agora a lhe ocorrer. Da mesma maneira, por isso, foi chamado de insensível.
Nas lembranças que vinham a sua mente, enquanto seus olhos estavam fechados, ele se lembrava de seus olhos bem abertos. Aqueles grandes olhos de camaleão, que miravam e enxergavam tudo ao seu redor, de maneira minunciosa, percebendo cada nuance de cor dos fios dos cabelos de suas companheiras. Lembrava dos timbres de suas vozes, de cada uma delas. Conseguia quase que ouvir novamente todas as frases, palavra por palavra, sílaba por sílaba pronunciada, com atenção digna de um predador, pronto a atacar.
Ele não era um predador. Ele apenas ouvia e sentia tudo aquilo, com todos os seus sentidos, para poder responder algo que fosse coerente. Todos sabiam disso e por isso, cada vez mais e mais pessoas vinham a ele buscar respostas.
Mas de repente tudo ficou tão complicado. De repente o vento começou a soprar mais forte levando frases alheias para muito mais longe, e quem ouvia o que ele dizia, passou a ouvir muito mais sons, de outros cantos e com tanto ruído, perdeu a capacidade de discernir o que era certo ou errado: “seguiremos o vento então”.
E foi assim que começou. O pequeno ser, confuso com a algazarra que se formava, a massa toda seguindo em uma mesma direção, quis parar, quis sentir e entender, e sentiu, e entendeu, e percebeu que não havia sentido nenhum naqueles movimentos, naquela direção.
Quis gritar para tentar fazer os outros acordarem, gritar algo para fazer com que vissem outras luzes em outra direção, e comoveu. Virou o ser insensível no meio da grande massa…
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De volta à sua realidade, tirou as mãos dos ouvidos aos poucos e não ouviu mais os gritos dos manifestantes. Abriu de leve os olhos e já não viu mais ninguém. Talvez, estando acolhido, pareceu pouco ameaçador, e todos foram embora, desistindo do massacre: “seguiremos nosso caminho em manada, deixa ele ai”
Então, caminhando com as patas nuas e silenciosas, ele subiu no cume mais alto e ficou lá, assistindo a massa. Quieto, sem emitir nenhum ruído para não ser percebido. Ele via tudo, ouvia todos, sentia cada cheiro, cada temperatura, percebia tudo o que estava acontecendo, mas era mais aceito sendo um ser apático, imperceptível.
Talvez a acusação de ser insensível, não era uma acusação, mas um pedido: “Seja um pouco insensível, feche seus olhos, cale sua boca, não queremos mais pensar…”
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2 Comments
Achei bem interesante o modo como vc expoem os sentidos!
Adorei…
Excelente!