Era noite de outono, o clima estava fresco e eu estava dormindo na varanda, como sempre fazia. De repente acordei com um barulho alto. Parecia aqueles barulhos que sempre fazem depois que gritam “gol”. Se repetiu mais uma vez, até que ouvi ele abrindo a janela para ver o que era. O barulho se repetiu mais uma vez e então o silêncio da noite foi retomado.
Fiquei um tempo observando uma movimentação estranha lá em baixo, e acabei adormecendo.
Acordei perdido no tempo. Geralmente eu acordava com ele me chamando pra ir pro quarto dormir. Não sabia se havia dormido muito e não tinha escutado ele chamar, ou se ainda era cedo e ele não tinha chamado. Enfim resolvi entrar pra ver e o-encontrei dormindo já, mas dormia no chão. Achei estranho, inclusive pelo piso meio molhado, mas deitei junto e dormimos.
A noite passou serena e tranquila, sem barulhos, sem movimentos, sem sedes. E os primeiros raios de sol começaram a entrar pela janela ainda aberta. Acordei e meu dono estava exatamente na mesma posição, dormindo profundamente. Fui até a cozinha beber água, voltei, o encarei como de costume, e ele permanecia imóvel. Lambi seu rosto e nada. Nem um sorriso, nenhum movimento. Então comecei a ficar preocupado.
Deitei em seu lado e acabei adormecendo novamente. A fome me despertou tempo depois, andei pela casa, voltei para vê-lo e embora ele continuasse ali dormindo, eu me sentia sozinho. As coisas já aconteciam lá fora, os barulhos de carros e os ônibus que me davam medo, eu podia ouvi-los, mas não ouvia meu dono. Buzinas, crianças, tudo acontecendo normalmente. O sol já estava alto, o dia estava quente, e comecei de fato me sentir sozinho. Algo me dizia que ele não iria acordar.
Eu andava de um lado para o outro, acabei com todos os grãos da ração que sobrava em minha vasilha da janta anterior e voltava para ele, querendo entender por que ele dormia tanto. O dia passou lentamente, o aparelho que ele costumava mexer sempre fez alguns barulhos e nem assim ele acordou. Deitei bem próximo, em sua barriga e fiquei esperando algum movimento, até que o sol se foi.
Sem brincadeiras, sem passeios, sem comida. Ainda havia água e era só o que eu tinha. E era com ela que eu tentava suprir minha fome. Dormi, acordei no meio da noite faminto, me sentei na porta e fiquei tentando achar alguma solução, busquei algo e lembrei do grande saco onde ele tirava minha ração. Eu não devia mexer ali. Levaria uma bronca se mexesse. E uma bronca dele era tudo o que eu queria naquele momento. Qualquer coisa, qualquer ação dele me deixaria mais feliz que a própria comida.
Fui com tudo no saco, pra fazer barulho mesmo, quebrar o silêncio da noite. Pra ele perceber que eu estava fazendo coisa errada, mas ele não se mexeu. Pelo menos eu consegui espalhar ração pela cozinha toda e matar minha fome. Deitei do lado dele e enfim consegui dormir melhor.
Ao acordar na manhã seguinte, lambi as últimas gotas de água da vasilha e percebi que a sede seria um problema maior. Tentei me conter, não brincar muito, ficar mais quieto para não sentir calor.
O aparelho dele começou a fazer muito barulho, toda hora e ele nem se mexia. Isso também me incomodava, não me deixava desligar e mais um dia passou arrastado. A ração sem água não estava descendo bem mas eu comi mesmo assim. A sede começou a ficar insuportável, me deu um desespero e eu resolvi que iria acorda-lo de qualquer forma.
Fiquei um bom tempo tentando move-lo com minhas patas, lambi, mordi, arranhei. Me sujei um pouco no líquido que tinha no chão. O cansaço começou a me dar mais sede então preferi parar.
A varanda também estava suja, não dava mais para eu dormir lá. Sentei na porta e sem saber mais o que fazer, comecei a chorar. O meu choro vinha de um jeito tão profundo que saia alto, destemido, uivado, meio latido, sons que não me lembro de ter feito nunca em minha vida.
Esperei anoitecer para fazer ainda mais barulho. E fiz. Lati, chorei, gritei a noite inteira, superando minha sede e minha exaustão, até que já bem de madrugada o aparelho da porta de saída fez barulho. Talvez enfim ele iria se mexer para pegar o aparelho como sempre fazia. Tocou bastante, ele não acordou de novo.
Eu chorei mais ainda e percebi alguém do lado de fora. Bateram na porta e uma felicidade tomou meu corpo. Comecei a latir e a pessoa do outro lado batia mais e eu latia mais e mais, até que ele foi embora. Fiquei louco, corri pela casa, pulei em meu dono, tentei arrasta-lo de novo, o-mordi…
Até que a pessoa voltou, bateu mais na porta, com mais força. Parecia ter mais gente junto e eu fiquei eufórico. Batiam com tanta força, eu fiquei muito assustado, mas a euforia era maior. Enfim a porta se abriu violentamente, atingiu meu fucinho, mas nem liguei. A alegria de ver alguém era tão grande que pulei, rodei e quis agrada-los, mas não ligaram muito pra mim.
Eram três pessoas, entraram olhando tudo e acharam meu dono. Outras pessoas vieram depois, a criança da vizinha também apareceu mas não entrou, me chamou e por ser a única pessoa a me dar atenção, eu fui correndo. Ganhei abraço, carinho, e depois ganhei água.
Pude ver meu dono sendo levado para fora, tentei acompanha-lo, mas a criança não deixou.
Hoje eu vivo em outro lugar, com outras pessoas e outros cães. Nunca mais vi meu dono. Nunca consegui entender o que aconteceu. Tenho muita saudades dele. Você consegue me explicar o que aconteceu?
Seu carrinho está vazio.