Faz 5 dias que eu não me olho no espelho. Não há nada que eu queira ver. Me sinto um velho em uma cadeira de balanços, balançando na varanda, vendo as crianças brincarem no jardim. Eu só quero ver as crianças brincarem no jardim….
A minha carcaça já não é mais a mesma. E é difícil aceitar isso. Olhar o enorme buraco feito por alguém na lateral do carro. Olhar meus olhos cansados, minhas rugas já bem evidentes e fios brancos em minha barba. Prefiro a ausência do espelho. Prefiro olhar para meu interior, mas há um buraco lá dentro também… Poxa!
O buraco por enfim perceber que você não tem para as pessoas a mesma importância que dá a elas. Você não é necessariamente o melhor de quem você considera seu melhor. Não é a escolha de quem escolhe. Nunca fez nada significante àquele que lhe significa tanto. E aquele cara que você considera pra caramba e adoraria dar um abraço, não faz tanta questão e você passa 4 dias sem uma resposta se quer pra combinar o reencontro. E empatia é uma via de mão dupla e é sempre mais fácil cobrar que os outros tenham do que tê-la.
Talvez por estar sobre os cristais, o buraco parece maior, as emoções se afloram e você pode direciona-las para cima ou para baixo. Talvez não. É só um escorpião preso num vidro de palmito* e essa magnitude toda está vindo só de mim mesmo. Talvez nem tem cristal nenhum aqui em baixo. Eu nem vi nenhum ET.
Eu não vi nada, alias. Nenhuma cachoeira, pois em nenhum lugar daqui aceitam cachorros. No lugar super iluminado sobre os cristais habitam pessoas iluminadas que não aceitam animais em suas propriedades, e cobram caro dos humanos. Se paga no mínimo 30,00 para visitar uma cachoeira.
Não obrigado.
Passei 5 dias enfiado dentro do camping, e diria que se tivesse ficado em um outro lugar, trancado num quarto, vigiado por um cachorro que incomodaria a Samanta a cada saída, eu não iria suportar. Então agradeço novamente a minha intuição por me guiar para o melhor novamente, cancelar lá e vir parar aqui. Pessoas muito legais, receptivas, amistosas e acolhedoras que tornaram meus dias mais agradáveis, mesmo estando preso no camping. Coloquei alguns trabalhos em dia, escrevi bastante o meu livro e dei algumas voltas com a Samanta nas redondezas.
Ao voltar de uma dessas voltas, me deparei com um buraco enorme na porta de meu carro. Provavelmente um caminhão de lixo fez o estrago. Como eu dizia, a minha carcaça já não é mais a mesma, e eu tenho que focar no motor, no conforto dos bancos, no meu teto solar, pra ignorar esse buraco feito por um estranho iluminado e ignorante que mora sobre os cristais.
Mas sábado tem uma feira a céu aberto que eu poderei passear com a Samanta. Tem frutas, artesanato, pedras pra comprar. E uma mulher feia na entrada, tirando a temperatura das pessoas, que irá dizer com tom autoritário, ríspido e mal educado que ‘animais não entram’.
Que estranho então, me questiono, pois vejo vários animais fazendo compras ai dentro, inclusive um animal bem mal educado me barrando. “Respira, Claudio, tá tudo bem. Você nem queria mesmo”, me exclama Samanta. Não mesmo. Bora passear naquele terreno árido cheio de poeira ali? Eu perguntoa ela pra ter certeza pois aqui não sei de nada.
Eu não dito as regras e não quero interferir na vibe do local. Só respiro e sigo as instruções. A gente se posiciona e segura a decisão. Ninguém me obrigou a isso, mas perceba que eu tenho feito um esforço enorme e mereço ao menos consideração.
Eu deixei meu amor na Chapada
Deixei lá sob os cristais.
Escondido em suas dúvidas e desejos
de um escorpião preso em um vidro de palmitos.
O vidro de palmitos em minhas mãos.
Como um mundo inteiro ao meu comando,
podendo respirar ou ir ao chão.
Me é entregue a dúvida como castigo.
Chacoalho o vidro com força,
pra fazer se mexer o escorpião, perturbar-lo.
Chacoalho com mais força pra ver se ele morre,
pra ver se ele deixa de me fazer temer,
pra deixa-lo para trás com meu amor.
Lá na Chapada eu deixei o meu amor.
Sigo meu caminho agora,
Esperando que os cristais se quebrem
e que a confiança da escolha se volte ao próprio peito.
Saímos sem muito planejamento. Depois de brigar com todos os pensamentos e desejos, decidi ir para onde tinha planejado antes de tudo mudar. Trancoso, Bahia. Aproximadamente 1500km em não sei quantos dias. Só vamos, seguindo, como sempre, sem se preocupar com o que vem por ai.
Agora estou em Cabeceiras – GO, em um hotel simplesinho de beira de estrada. Limpinho e confortável porém, e aproveito minha estada pra já publicar esse texto, um tanto adiantado, mas é por que ja houve tantos acontecimentos, que eu preferi já adiantar a história.
(*referência a uma analogia do texto da semana 25)
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