Enfim, depois de algum tempo adormecida, ela despertou. Estava deitada em baixo de uma grande árvore, onde sempre ia quando se sentia ameaçada ou triste.
Aquela grande árvore parecia suprir todos os seus medos. Lhe protegia do mundo, com seus galhos fortes que pareciam mãos que barrariam qualquer mal que pudesse acomete-la.
Ela havia corrido pra lá pois tinha brigado com o seu grande amor. A pessoa mais dócil e carinhosa que ela já conhecera em toda a sua vida. Ela nunca acreditou que ele seria capaz de fazer algum mal a ela, como de fato nunca a fez.
Muito pelo contrário, ele era o homem que ela pediu aos anjos. Cuidava dela como nunca ninguém havia cuidado. Carinho, zelo, compreensão. Se davam muito bem, e embora não gostassem de todas as mesmas coisas, gostavam de muita coisa em comum e se divertiam muito em suas noites financeiramente miseráveis. Riam de seus dilemas, discutiam e chegavam a soluções que os bastava para seguirem em frente.
Ele gostava de falar, e ela ouvia. As vezes ele falava tanto, que ela deixava de ouvir, mas ficava olhando para ele e sorrindo enquanto pensava em outras coisas, só pra ele se sentir bem.
Mas hoje se deu essa briga, e ele a pegou pelos ombros, com as mãos fortes e firmes e a chacoalhou, enquanto gritava com olhos desesperados.
Ela também se desesperou saiu de si, e fugiu. Ela não se lembra direito como tudo aconteceu. Só lembra que fugiu. Com medo de que todos os fatos de seu passado se repetissem.
No seu passado, ela sempre se envolveu com homens violentos, que a agrediam, a molestavam. Isso fez com que ela sempre temesse se relacionar com alguém, mas por sua infância solitária, sua carência falava mais alto e ela se envolvia de novo. Parecia atrair ou escolher pessoas da com as mesmas características. Violentas, agressivas. Até que uma vez, depois de muito sofrer, ela não aguentou e assassinou o seu parceiro.
O trauma é tão grande que até hoje ela não sabe direito por que fez isso. Mas nós sabemos. Ele era mau! Assim como todos os outros, ele a humilhava, não a respeitava. E quando chegavam em casa, ele a agredia.
Constantemente podíamos vê-la com óculos escuros pra esconder as marcas em seu rosto. Seus olhos azuis, tristes, se disfarçavam pelo seu bom humor. Ela sempre se mostrava uma pessoa alegre para camuflar suas dores, pois ela não queria perde-lo, por pior que fosse. Mas no fundo, em seu âmago, ela só queria estar longe dali.
Até que um dia aconteceu. Eles brigaram, e quando ele deu o primeiro tapa em seu rosto, ela correu pra cozinha. Ele foi atrás, a puxou pelos cabelos, e ela pegou a primeira coisa que viu em sua frente. Uma faca de pão, sem muito corte, mas com ponta suficiente para enfia-la em seu peito.
Mesmo machucado, ele bateu mais, e a luta foi bem feia, mas ela não largou a faca. Deu mais cinco ou seis punhaladas fatais e matou o homem que amava.
Ela não lembra de nada. Sabe do crime pois pagou por ele. Pagou caro. Foi julgada, sentenciada e ficou isolada do mundo por alguns anos, cumprindo sua pena. Mas sua mente apagou, pois ela não é uma pessoa má. Ela apenas é vítima das circunstâncias do passado.
Então já desperta, embaixo da grande árvore, ela se sentou. Encostada no grande caule, chorou, lembrando do passado. Pensando no que fez com sua própria vida, e onde foi parar.
E se lembrou de quem é esse homem com quem está agora. O grande presente da vida. Carinhoso, cuidadoso, que não trás nada de seus antigos relacionamentos doentís. A recompensa, o conforto merecido por uma vida de tanto sofrimento.
Foi apenas um lapso. Um momento ruim que passavam. Mas ele a completava. Era definitivamente o homem que ela queria passar o resto de sua vida. E ela percebera que tê-la chacoalhado e gritado com tanta força, foi apenas uma reação à briga. Não era natural dele, ele jamais a faria mal. Ela tinha certeza que nada aconteceria além disso, pois eles se amavam, ele era o amor de sua vida.
A lua já começava a aparecer no céu avermelhado. Apenas um risco fino, parecendo um sorriso. Ela pensou em seu amor, sorriu de volta, enxugou as lágrimas e se levantou para correr de volta pra casa.
No caminho, pensou como falaria, como pediria desculpas. Queria abraça-lo e passar o resto da noite junto com ele, sem brigas, sem remorsos. Só queria estar junto e não pensar em nada.
Quando chegou, já estava escuro mas as luzes estavam apagadas. Abriu a porta, e não viu ninguém. Tudo em silêncio. Achou que ele havia saído, mas quando acendeu a luz da cozinha, encontrou seu corpo no chão, ao lado de uma faca, em uma poça de sangue.
Ela então se lembrou. Mas já era tarde.
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