Eu estava tomando banho e vi uma traça-de-lã na parede. Aqueles bichinhos nojentos, achatadinhos que comem roupas. Ela estava pra fora de sua casinha, tentando descer a parede. Achei curioso como a casinha gruda na parede, mesmo com ela puxando pra baixo. Ela se esticava e se encolhia fazendo a casinha descer, e a casinha descia grudada, sem cair. Sorte dela que a casinha não caia, mas será que não seria mais fácil se não tivesse a casinha? Olha o pensamento do nômade…
Deixei o banho de lado e fiquei olhando todo aquele esforço da traça na parede, até que a casinha desgrudou e caiu para baixo de seu corpo, mas ela estava atenta, presa a parede, e começou um esforço enorme pra subir de novo com sua casinha pendurada em seu corpo. Eu pensei em ajuda-la mas eu sequer sabia pra onde ela queria ir de fato. Estava descendo, agora subia.
Dai a água do chuveiro começou a esquentar absurdamente e me fez voltar a atenção ao banho. De repente, parou de sair água. Estávamos sem água.
A água daqui vem de minas, bombeada por rodas d’água até a parte mais alta do sítio, que então vai sendo distribuída para os ponto necessários. Algum cano estourou ou entupiu com alguma rãzinha, ou sei lá o que. Já era onze da noite, tirei com a toalha o pouco de espuma que ainda havia no corpo e desisti do banho naquele dia.
Durante a semana, temos trabalhado bastante. Talvez não o bastante pois há demandas extras de outras coisas por aqui. Nem reclamo mais pois sobretudo, tem dado pra descansar. Eu coloco um colchonete num deck que fiz lá em baixo da mangueira, computador no colo, e fico lá trabalhando, quando meus devaneios permitem.
E lá estava eu olhando os cavalos e vacas no pasto bem a frente. Que vida que eles tem, né!? O dia todo só comendo e cagando. Não é nada diferente de nós. O computador no meu colo é como um pasto verde, de onde eu tiro o mato de meu sustento pra alimentar minhas ganâncias disfarçadas de necessidades e cagar depois.
Então bem acima de mim, me chamou a atenção uma casinha de joão-de-barro, e um belo casal que ia e vinha com algum bichinho no bico pra alimentar seus filhotes lá dentro. Lá estava eu novamente divagando, deixando o tempo passar, observando o trabalho intenso daqueles pais dedicados. Eles voavam e eu ficava olhando aquela casinha, pensando nos bebezinhos ali sozinhos, esperando os pais voltarem com mais um bichinho apetitoso.
Tudo é lindo aqui no sitio e é fácil se perder em devaneios e belas imagens, como um lindo tucano que surge nos céus, com seu bico alaranjado refletindo a luz do sol. Que bicho lindo é um tucano, cada vez mais presente aqui por essas terras. Não tinha tucano por aqui quando eu era criança. Então ele virou e veio vindo em minha direção. Fiquei surpreso. Talvez ele não tivesse me visto ali deitado no colchonete. Pousou bem na árvore, próximo à casinha de joão-de-barro, seu bico enorme ficava ainda mais reluzente com a luz do sol por trás. Pensei em pegar o celular pra fotografa-lo. Ele deu dois pulinhos pra próximo da casinha, e meteu o bico pra destrui-la. Eu dei um grito súbito.
Levantei de imediato e ele nem ligou. Olhou pra mim e deu mais uma bicada na casca grossa da casinha. Peguei um toco no chão e arremessei, pra assusta-lo, não atingi-lo, pois podia atingir a casinha. Ele olhou pra mim novamente, se abaixou por trás dos galhos prevendo que mais objetos voariam em sua direção. Como não achava mais nada pra jogar, eu gritava, assoviava “sai dai, tucano filho da puta”. E então os pais chegaram como duas naves de Star Wars, junto com mais dois outros pássarinhos, e o espantaram, voando em escolta, bicando sua cabeça.
Não tenho nenhuma foto desse tucano. Mas acho que os filhotes sobreviveram.
Meu pai chegou pra ver o que tinha acontecido com a água. Embora eu seja adulto e saiba me virar sozinho, tem coisas por aqui que eu preciso dele pra me instruir. Esse sítio é um Universo de mecanismos e funções e nessas horas, é inevitável pensar o que será desse lugar quando ele não estiver por perto.
É inevitável pensar em tucanos (ou irmãos de tucanos – numa metáfora que talvez só eu entenda) querendo destruir a casinha pra comer os filhotes, pra saciar suas próprias ambições e cagar depois, como os gados, como todo mundo. Como eu!
Eu trabalho tanto meu desapego e aceitação, tenho tanta fé que tudo o que eu preciso sempre será suprido, mas quando penso nessas coisas, me dá uma agonia. É difícil aceitar. Talvez meu pai queira que eu lute, que eu proteja a casinha de joão-de-barro. Talvez a traça não desista de sua casinha pois o pai dela ensinou a ela que tinha que levar essa casinha até sua morte, mesmo que carregar a casinha muitas vezes pode ser a própria morte.
No caso do joão-de-barro, a casinha protegeu os filhotes do belo tucano filho da puta, mas se eu tenho tanta fé de que tudo acontece como tem que acontecer, e que eu sou suprido de tudo o que necessito pra cagar nesse grande pasto da vida, então devo permanecer treinando meu espirito de desapego e aceitação.
Eu não salvei a traça pois não sabia pra que lado de fato ela queria ir. O tucano era lindo, mesmo assim eu preferi salvar os filhotes que eu sequer conseguia visualizar. Esses filhotes vão crescer, nem saberão que um humano uma vez os salvou. Seus pais vão ensina-los a fazer uma casa forte de barro, pra não precisar contar com humanos, pois eles não acreditam em anjos ou providências do Universo.
Mas eu acredito, acabo de lembrar que acredito…
Acredito, logo concluo.
Me desculpe…
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