Neste exato momento, eu estou em terra firme. No ponto exato de onde tudo começou. Escrevo esse trecho do meu diário de bordo, deitado num sofá-cama improvisado, que na verdade é um colchão com almofadas projetadas. Então mais cama do que sofá, por isso é tão confortável, independente do nome que se dá. E independente do nome que demos, me lembro que foi exatamente aqui, depois de 10 dias viajando juntos, que algo aconteceu. Algo que mudaria para sempre nossas vidas e nosso relacionamento.
Assim como um marujo titubeia em chão firme depois de se acostumar com o balanço do mar, eu me movo com cuidado para não cair, atordoado com toda essa firmeza sob meus pés. Esse solo firme me é tão estranho, e nem estou falando da velha analogia sobre nomadismo. Não falo da casa ou do sofá-cama…
E acaba sendo impossível não criar comparações com minha ex-namorada, aquela pessoa que me renegou tanto, que me deixava inseguro com toda acusação. É inevitável não lembrar e comparar. Comparações essas que me fazem ficar ainda mais tonto, com náuseas e cheio de medos.
Quando saímos de Foz do Iguaçu, passamos na terra natal de Aline. Ficamos um dia na cidade onde ela nasceu, na casa de um tio dela. Foi meu primeiro contato com sua família sendo oficialmente seu namorado. E ser apresentado assim, como namorado, sem vergonhas ou receios, dava início às comparações com minha ex, que demorou tanto pra agir da mesma forma.
Saímos de lá e fomos para o Salto do Yacumã. É incrível como a gente subestima o Brasil. Como se não bastasse termos as Cataratas do Iguaçu, que são as maiores cascatas do mundo em volume d’água, temos outros coisas maiores do mundo. A maior praia (Praia do Cassino), o maior Jequitibá (Parque Vassununga), a maior estátua de Buda (*terceira maior do mundo), e outras 405 grandiosidades como o Salto do Yacumã.
Deixamos Samanta no camping com um casal de desconhecidos e fomos conhecer o tal Salto. Trata-se da maior queda d’água longitudinal do mundo. Uma cascata com 1,8 km de extensão pelo Rio Uruguai, onde a natureza se recupera de tanta exploração do passado e por isso há uma grande placa que em resumo diz “não tire nada mais daqui”.
Pedras lindas de todos os tamanhos e cores, polidas pela força da água, atraem os olhos e as mãos. O toque é inevitável e a vontade de levar uma pra casa também. “Mas não posso” disse ela. “eu queria, mas perguntei ao meu guia espiritual e ele disse que não posso (…). e que falta me faz Sammy, será que ela está bem?”.
Mas uma comparação me vem a mente: Minha ex estaria aliviada, dando graças por Samanta não estar junto. Talvez até desejasse que aquele casal de desconhecidos a levasse embora. Aline se preocupava. Alias, ela gosta tanto de Samanta que eu deixo aqui registrado que a quero como tutora de Samanta se algo me acontecer e eu faltar um dia.
E por agradecimento a todo esse amor com o serzinho mais importante de minha vida, eu queria dar um presente a ela. Será mesmo que foi um guia real invisível que disse a ela para não pegar uma pedra? Ou apenas uma consciência, por sua boa índole e caráter responsável, que respeita as regras escritas em uma placa?
Eu pensava que foi só a consciência dela, mas como posso ter certeza? “Faz assim, me diz se eu posso pegar uma pedra com um sinal externo, que não venha de meus pensamentos. Tem tanta borboleta aqui, pretas, vermelhas e azuis. Me diz que posso com uma borboleta amarela. Eu não vi nenhuma amarela. Se uma borboleta amarela aparecer, é o seu sinal de que eu posso pegar uma pedrinha dessas pra presentear minha namorada”.
Dois dias depois conheci a mãe dela. Um dia depois de ter conhecido as ruínas de São Miguel das Missões. O tipo de lugar que é belo por si só, excluindo a ação humana. Tanto a ação da história que deixa o lugar triste, quanto a ação atual, um evento besta, uma invenção banal. Só o visual e a contemplação do que é, basta! Andamos muitos quilômetros a mais pra conhecer as ruínas, e as ruínas por si só valeram a pena. Vou esquecer aquele espetáculo noturno que mais parecia minha ex, tentando parecer mais do que era.
Também, diferente de minha ex, a minha atual sogra me acolheu com amor. Sem sub-julgar, sem questionar. Ela é doce, querida, como as geléias de frutas de seu pomar, preparadas com carinho e nos presenteadas.
Enfim, dois dias depois, chegamos em Dois Irmãos, e cá estou cambaleando embriagado de solo firme. Cheio de dúvidas e medos. Viciado em ser sempre frustrado, eu espero o golpe derradeiro que findará esse sonho lindo. Desconfio do carinho, tenho medo de não estar fazendo algo a altura e inconscientemente, penso em me atirar ao mar antes de ser jogado.
Desejei tanto, por toda a minha vida um colo assim, que agora que me é iminente, temo não ter direito de usufruto. Cirurgicamente moldado, um colo que me foi negado tantas vezes, em insana comparação, pois me acusava de não ser merecedor. Deveria me conter com o que tinha, e ainda me curvar ao que era oferecido.
Pensar em minha ex é inevitável pois graças a ela eu sinto tudo isso e me percebo ainda não curado, me julgando não merecedor de tudo isso.
Daqui pouco mais de um mês, esse ciclo estará se fechando. vai fazer um ano do dia em que eu partia para a quarta temporada e reencontrava essa garota. Daqui pouco mais de um mês as coisas vão se transformar pra ela e eu tenho medo.
Tenho medo de não ser merecedor ou de não aguentar. Medo da história se repetir, os castigos injustos ou meus erros provocados. Talvez seja besteira de minha cabeça. Talvez eu só esteja embriagado. Como posso saber?
Que me apareça uma borboleta amarela…
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