Eu fui passear com a Samanta lá no meio do mato, onde eu gosto de ir e só não vou mais pois cansa, e suja muito. Mas era o último dia do ano, e mesm oque não seja definido como meu novo templo, eu sinto que talvez já é. Me sinto em paz por lá.
Então me veio a ideia de passar a virada lá, sozinhos, meditando. Não sabia ao certo o que fazer. Havia apenas um único convite e não estava muito a vontade. Fiquei sem saber e deixei que as coisas fluíssem naturalmente. Como um dia normal, com meu ceticismo e racionalidade normais. Ignorando as mensagens padrão que chegavam nas redes sociais.
Respondi a apenas duas, que continham meu nome em seu conteúdo e pareciam ter sido escritas diretamente para mim. Então, em uma das respostas, virou uma conversa onde mencionei minha vontade e fui encorajado “vá! vai te fazer bem!”.
Enchi meu cantilzinho com whisk, coloquei algumas castanhas num potinho, deitei os bancos do carro, arrumei o porta-malas com meu edredon, pra virar uma caminha.
Não era seguro estar em evidência onde eu iria, então coloquei roupa escura mesmo, sem me preocupar com tradições. Bermuda, camiseta e bota, para caso algo complicasse. Peguei a lanterna que carregava na tomada enquanto preparava tudo isso, cigarros, velas, isqueiro. Água pra mim e para a Sam, e saimos.
Eram exatamente 23h quando passei pela portaria do condomínio. Alguns carros viravam sentido cidade, eu virei para o sentido oposto. Segui exatamente o caminho que calculei durante a tarde. Cruzando poças de barro e trechos mato alto, até chegar onde planejei.
Fui surpreendido pelos gritos dos quero-queros, e pude ver três filhotinhos correndo quando parei o carro. Até fiquei receoso de ter parado próximo ou sobre seu ninho. Pensei em ir para outro lugar, mas era tudo escuro, e ali era o lugar que eu tinha visto durante o dia, e que me dava certa segurança.
Desliguei o carro, farois, luzes internas. Desliguei o celular e o joguei dentro do porta-luvas. Abri o porta-malas e Samanta veio para a parte de trás, tentar entender o que faríamos. Ficou sentada olhando enquanto eu acendia as três velas, imitando a posição e o exato sentido do Cinturão de Órion, minha casa.
Quando Samanta percebeu que ficariamos ali, se acomodou e deitou nos bancos rebaixados. Me acomodei também, comi algumas castanhas, tomei meu whisk e tentava me concentrar em uma conversa com alguém que talvez estivesse ali.
Porém os quero-queros não paravam de gritar. Eu não conseguia ouvir nada além de seus gritos, que pareciam estar muito próximos.
Então eu me silenciei. E depois de algum tempo parado, com pouco ou nenhum movimento ou som, deixei de ser uma ameaça e eles silenciaram também.
Ai eu pude retomar minha conversa com o Universo, e pude ouvir que os morcegos estavam presentes. Em um lugar sem árvores, onde eu jamais imaginei que eles estivessem, eles estavam. Como sempre estiveram!
Eu sentia então que estava tudo bem. O sentimento de paz invadiu meu corpo e minha alma se elevou sobre a cidade que eu via lá longe.
A partir dali, eu tive a verdadeira noção do que eu represento. De quem eu sou, no meio daquelas milhares de pequenas luzes de postes e janelas. Isento e ao mesmo tempo inserido. Pude abstrair todo sentimento fútil e de existência por mera tradição, e sentir o que era de fato emanado a mim.
Meu pai, minha mãe e menos de meia dúzia de pessoas que realmente se importavam, e que não mandariam uma letra sequer para dizer, pois o sentimento ia além de palavras.
E minha conversa foi intensa. Entre goles de whisk, tragadas e castanhas, sem fazer ideias do tempo, apenas imaginando pela quantidade de fogos que eu via brilhando lá em baixo na cidade.
Talvez fosse meia-noite, pois haviam muitos fogos. Samanta deitada tranquila, pois estávamos muito longe para ouvi-los. Mas, depois de alguns minutos eu descobri que agora sim era de fato meia-noite.
Se você viu os fogos de seu quarteirão, do clube, do bairro, saiba que foram poucos. Eu vi os fogos da cidade inteira, explodindo ao mesmo tempo, por todos os lados, e uma vibração atingiu meu corpo de tal maneira que ouso a dizer que foi a virada mais mágica que eu passei em meus 42 anos.
Me coloquei em pé próximo a vela do meio, que representava Alnilam (minha casa de fato), e com os braços para o céu, chorei. Não de tristeza, mas de emoção.
Chorei sem medo, sem tentar esconder. Um choro intenso, sonoro. Um choro que talvez estivesse engasgado em meu peito pelos últimos 2 anos.
Enquanto a cidade explodia em luzes coloridas, os morcegos gritavam sobre mim, e eu tive a certeza de que está tudo bem. De que tudo isso vai passar, pois eu escolhi estar aqui, e como parte de meu livre arbítrio, sei que a recompensa será incrível e está próxima.
Beijei minha tatuagem, como gesto de amor ao meu Eu maior, e fui abraçar Samanta, que estava em pé tentando entender o que se passava.
Desejo que todos os reveillons a partir agora, sejam assim. Com silêncio humano, e muito barulho da alma (sem ruídos).
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