Não tire os problemas de minha vida

São nos velórios que a gente reencontra a família. Que a emoção aflora e nos lembramos de dizer “eu te amo”. Quando estão todos vivos, a gente cria o problema, por que a gente não vive sem problema.

Eu posso morar sozinho para fugir de tudo que eu não posso viver sem. Posso fingir que a vida é perfeita em um planeta só meu. Tipo Pequeno Príncipe. Expulsar raposas e ovelhas para que se matem sozinhas longe de mim. Tocar a vaca para fora de meus pastos e experimentar a real inércia d’alma. Experimentar uma solidão que eu finjo ter, mas que na verdade eu nem faço ideia do que seja. Por que estão todos sempre ali!

Eu vou expulsar meus filhos, nem vou deixá-los existir. Mas quando eu chorar, sei que meus amigos estarão sempre comigo. E então quando eu estiver bem alimentado do carinho deles, eu os chuto para fora também, pois esse planeta é meu! E então no caminho de volta para casa, algum deles morre e “eba! velório”…. Vamos lembrar de como nos amamos e como a vida não é nada sem problemas.

Eu agradeço a minha falsa solidão, pois se eu estivesse cheio de amigos não sentiria o calor dos verdadeiros. Agradeço ao babaca que riscou meu carro, pois sem os riscos continuaria dando tanto valor estético a algo sem importância, dando valor ao corpo sem me importar com a alma. Agradeço a doença pois com ela aprendo o que é me sentir bem. A escuridão pois me faz perceber a luz.

E enquanto eu tiver uma vaca, uma ovelha e uma raposa, pra escorraçar de vez em quando em momentos de fúria, minha vida estará perfeita. Afago a ovelha e depois a toso. Sei que o pelo volta a crescer. A raposa está alimentada, não vai atacar, mas simulo o ataque mesmo assim, e saio correndo atrás dela, xingando e batendo com a vassoura. Não tem problema, ela voltará de madrugada para dormir na varanda.

E a vaca… Ah, a vaca. Ela vai me dando leite, sem saber se vai virar bife amanhã. E continua ali, na sua vidinha patética e medíocre, solitária em seu pasto, como eu aqui. Sem saber o que vai acontecer amanhã. E é isso que torna a vida agradável.

Me deixe xingar a vontade, me deixe bater nos meus bichos, só não tire eles de mim. Não tire os problemas de minha vida. Pois sou infeliz com eles, mas sem eles eu não vivo!