Houve um homicidio em Mucuri. Duas pessoas morreram. O tiro era pra uma, mas a outra estava próxima, no lugar errado, na hora errada. Ou certa, dentro de minha concepção taoísta.
Outro dia estávamos nós descendo a rua, quando nos deparamos com aqueles três delinquentes. A Gangue do Morrinho. A gente chamou eles assim pois sempre ficavam ali, naquele morrinho de areia pra construção, na espreita, esperando a loira forasteira passar. O tiroteio começou, eles se dispersaram como que para nos encurralar, o rajadinho, até conseguiu assustar Samanta, mas quando ela foi pra trás de mim, eu fiz meu som ameaçador e ele preferiu recuar. O pretinho já tinha levado uma sova no dia anterior, então latia de longe e tratou de se mandar quando o rajadinho fugiu e eu mirei pra ele. Caramelo correu atrás e a rua estava livre pra passarmos.
_ “amanhã estaremos aqui” _ gritou o rajadinho de longe _ “pois nois é os deliquente da Gangue do Morrinho” _ ele latia sem parar.
Sim, nós também estaremos, e faremos o que for preciso pra passar pro outro lado da rua, pois se vocês são delinquentes, nós somos a própria delinquência, os forasteiros da loira peluda.
_ E se eles forem do bem? _ Questionou Sammy _ E se fizeram tudo isso só por que estão assustados?
Estávamos em Mucuri, no extremo sul da Bahia. Um lugar que me lembrava muito Torres quando estive lá a primeira vez, em baixa temporada. Além da paisagem, mar cinza separado da cidade pelas dunas e ruas vazias, estávamos em uma pousada que nos trazia a questão: Quem são as pessoas do bem?
Chegamos pagantes, mas logo a gerente percebeu que tínhamos muito mais do que dinheiro para oferecer. Solicitou alguns trabalhos em troca de dias de hospedagem, que eu, ingenuamente pedi pouco. Mas é que eu não me senti muito a vontade lá de início. Então a tal gerente nos cativou e nos acomodamos, com um bom café da manhã e mimos do tipo trazer suco de umbu enquanto trabalhávamos. E então outra pessoa chegou cheia de críticas e reclamações, como os cachorros da Gangue do Morrinho. Latindo raivosa e falando tanta coisa que nos colocou em dúvida. O que é realmente certo ou errado? Quem é do bem ou do mal? Existe isso? Talvez ela só esteja com medo, querendo se auto promover pra se garantir de alguma coisa.
O cara que matou as duas pessoas no final de semana, eu soube que estava vingando a morte do irmão, que havia sido assassinado meses antes pela então vítima. O outro só estava passando, como nós passávamos diariamente pela Gangue do Morrinho. Alguém vai nos morder ali?
Certo ou errado, bons ou maus, tomamos nosso partido. A vibe não bateu muito com a mulher que latia tanto. E na hora de despedir, a gerente ficou na dúvida se podia ou não abraçar. Abraçou. Foda-se. Queríamos mesmo dar um abraço apertado naquela pessoa tão querida. Migramos novamente sem planos definidos para mais ao sul, entrando no Espírito Santo. Guriri.
Da mesma maneira, nos movemos sem saber muito onde íamos parar, e ao parar, dessa vez pensei em seguir, mas eu não viajo mais sozinho, e cheio de incertezas, me deixei conduzir, além de dar a direção de meu carro. Se eu não sinto nada sobre ficar ou seguir, e minha parceira diz que sente de ficar, ficamos.
E da mesma maneira, um dia pagantes e a gerente percebe que temos mais a oferecer. Diferente de Corumbau, o que tínhamos a oferecer foi mais perceptível. Uma palavra de apoio, soprada no ouvido, pra acalentar corações em luto: “ele está bem, estará por aqui logo mais. Respire”, eu disse sem saber o porque. Choro contido seguido de um tímido sorriso e gratidão. E depois disso, um desabafo longo, cansativo e ilegal.
Desabafos geralmente são ilegais, pois são impensados, como os latidos da Gangue do Morrinho, como os tiros na multidão pra honrar e vingar a morte de um irmão. São ilegais, mas dependendo do ponto de vista, são justos. E algo que eu aprendi nos meus quarenta e cinco anos de vida é que nem tudo que é legal é justo e nem tudo o que é justo é ético, legal e do bem.
Fechamos um voluntariado meio insólito por aqui. Ficamos até no meio da semana, continuando nossa jornada de prospectar pessoas com pouca cultura em divulgação. Pessoas que sequer respondem suas mensagens para negar suas ofertas com um ‘não, obrigado’. Simplesmente não respondem, como se você fosse uma máquina, um atendimento robô automatizado.
Me irritei, e depois percebi que não foi pra isso que eu vim aqui. Eu vim pra dar o abraço que alguém me mandou trazer.
É justo!
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